I - “PETROBRÁS QUE LÊ !” PROJETO DE DESENVOLVIMENTO DA LEITURA
II - IVETE SACRAMENTO - O RACISMO E AS COTAS NA UNIVERSIDADE
18-08-2006
Estou em Salvador, Bahia, em pleno período eleitoral na TV e a população parece indiferente, defraudada. Só os taxistas se atrevem a tocar no assunto. Mas não colocariam decalques de candidatos no carro, estão na moita... Ressabiados.
Vive-se a mesma sensação que experimentamos durante a recente campanha pelo desarmamento. Parece que as pessoas estão de acordo. Na última hora, houve uma inversão de posições e venceu o “não!”. Até agora não se sabe, em verdade, se a mudança se deu efetivamente por uma tomada de consciência, ou se foi o subconsciente coletivo que pretendeu manifestar-se contra as expectativas. Contra o quê? Em sã consciência, é pouco provável que a população quisesse manter o direito de armar-se contra os bandidos...
Ao contrário das campanhas anteriores, não se vê propaganda eleitoral nos carros, exceto naqueles candidatos locais, quase familiares, de relações muito pessoais — deputado estadual, vereador... A população está acanhada, envergonhada com tantos escândalos, com a corrupção, com “mensaleiros”, sanguessugas...
E não vamos mais ter “showmícios”...
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Vamos ao que interessa, ao que vim fazer na Bahia...
Hospedei-me no Fiesta, um dos grandes hotéis da cidade, no moderno bairro de Itaingá, ao lado da sede da Petrobrás, minha anfitriã. Vim para dar uma palestra sobre a promoção do hábito da leitura, na novíssima Universidade Petrobrás, uma “uma universidade corporativa” interessada no aperfeiçoamento de seu pessoal. A leitura é uma das estratégias de promoção social da instituição.
“Petrobrás que lê” é um projeto de desenvolvimento do hábito da leitura, criado pela biblioteca da Universidade Petrobrás, entre funcionários da instituição. Recente, mas já colhendo os bons resultados da iniciativa, graças ao investimento na aquisição de obras de literatura de boa qualidade e às estratégias de divulgação do novo serviço entre os membros da comunidade, começando pelo Rio de Janeiro. Na Bahia está sob a liderança da bibliotecária Regina Tonino, que foi minha orientanda de mestrado na Universidade de Brasília.
A coordenação da mesa redonda, no Auditório da empresa em Salvador, esteve sob a responsabilidade do jornalista Jorge Portugal, conhecido do público por manter um programa cultural na Tv Educadora.
À mesa estava a emblemática professora Ivete Sacramento, a primeira mulher negra do Brasil a ser reitora de uma universidade do país e também a primeira a implantar o sistema de cotas para negros nas universidades.
Participaram também da mesa dois poetas dos quadros da Petrobrás — o geólogo Argemiro Garcia e o médico Carlos Melgaço Valadares. Todos apresentaram os temas e até leram poema seus, em clima de enorme receptividade da plateia.
Eu apresentei uma abordagem mais técnica sobre o assunto mas de forma amena e acessível. Havia levado a palestra escrita mas optei pelo improviso e pela síntese. Creio que consegui dar meu recado com relativo sucesso.
Houve depois a abertura de uma exposição com os novos livros incorporados ao acervo do projeto Petrobrás que lê, um show musical e um coquetel. Acabamos num restaurante francês, com o casal Regina Tonini e Geraldo Tonini, e duas bibliotecárias amigas e a sub-reitora, que é pessoa de extraordinária verve e muito senso de humor e crítica. Ficamos até o fim da tarde conversando. Ivete acabou sendo o centro das atenções pelos relatos e desabafos que fez dos preconceitos a que esteve sujeita em sua carreira. Casos chocantes, relatos de humilhações se a forma como enfrentou tudo com senso de humor e altivez.
O testemunho de Ivete, eu decidi transformar em uma crônica de libelo e exemplo, para levar ao conhecimento público os ensinamentos extraordinários resultantes de seu testemunho e da defesa que fez de questões polêmicas relativas às afirmações positivas em defesa e benefício da população negra no Brasil. Vejamos:
IVETE SACRAMENTO e O RACISMO E AS COTAS NA UNIVERSIDADE
Ivete Sangalo foi a primeira mulher negra a ser nomeada e reeleita Reitora de uma universidade pública no Brasil — a Universidade Estadual da Bahia (UNEB). E também foi a pioneira na implantação, em 1991, das polêmicas cotas para o ingresso de negros nas instituições de ensino superior no país.
Participamos de uma mesa redonda sobre a promoção do hábito da leitura, na Universidade Petrobrás (dia 18 de agosto de 2006) e depois almoçamos conversando à tarde com amigos, e ficamos a tarde inteira discutindo o tema do preconceito racial que a vitimou durante toda a vida e, como não poderia deixar de ser, acabamos colocando a questão das cotas na berlinda. O tema é “momentoso” por causa de projeto de lei que pretende instituir as cotas de forma mais generalizadas e, por causa da reação de muitos intelectuais que manifestam o temor da implantação da concepção da “raça” na legislação brasileira.
E, por conseguinte, a institucionalização do anti-racismo.
A tudo respondeu com muito humor e serenidade.
Vamos primeiro ao preconceito. Relatou situações de vexame a que foi submetida em muitas ocasiões em sua vida, mesmo depois de já ser uma profissional graduada, com mestrado, exercendo cargos de alto relevo na administração acadêmica. E na Salvador (Bahia), cidade negra por definição...
Convidada para uma cerimônia oficial, com a presença do Governador, sentou-se na primeira fila, à espera de ser
chamada para a mesa. Um dos encarregados da organização pediu para ela retirar-se dali, alegando que o local estava reservado par as autoridades. Ela limitou-se a responder que agradecia a informação, sem pretender defender-se. O homem voltou a insistir, manifestando que ela era muito atrevida... Levantou-se e, em seguida, foi chamada para compor a mesa, para o desconcerto do homem da segurança. Caso típico, que revela como o negro é estigmatizado até mesmo pelos negros e pobres...
O segundo exemplo, entre outros que contou com malícia e nenhum rancor, com altivez e dignidade, foi bem mais grave e vexatório. Ela estava em Recife, saindo da antiga Mesbla, com um amigo nissei. Quando então começou a ouvir um coro na rua, com uma agressividade crescente, vociferante: “larga esta negra!”, “larga esta negra !!!”
Tentaram ignorar o insulto mas o coro crescia e decidiram voltar para a famosa loja de departamentos, temendo maiores hostilidades.
O terceiro acontecera à margens do rio São Francisco. Estava em Januária, na Bahia, e foi com um amigo negro para Petrolina, Pernambuco, e pretenderam hospedar-se em um dos melhores hotéis da cidade. Foram informados de que não havia mais vagas disponíveis. Ela desconfiou e, já na esquina, telefonou de seu celular para o hotel, e conseguiu reservar duas suítes, sem nenhum problema.
Bastemo-nos com registrar mais um episódio, antes de discutirmos a questão das cotas. Ela vive agora em um belo condomínio vertical em zona nobre de Salvador, mas teve alguma dificuldade para adquirir o imóvel. Já instalada nele, recebeu ameaças e intimidações anônimas em bilhetes por debaixo da porta do apartamento. Nem vale a penas registrar as baixarias que escreveram, até porque repetem os mesmos chavões racistas já conhecidos do público.
Pessoa de origem humilde, que venceu com enormes sacrifícios, não de deixou envenenar por esses incidentes, não azedou o seu bom humor, que é esplêndido. Em seu estorcismo, nada tem de resignada ou vencida. Prefere as ações positivas em favor dos negros e dos pobres, do que o ativismo belicista de seitas reivindicatórias espalhafatosas. Prefere a firmeza de atitude e a negociação por direitos que considera inalienáveis e justos.
Vítima de agressões e violência, prefere lutar com a razão e os melhores exemplos.
A criação de “cotas” foi o caminho que ela escolheu para dar ao negro uma oportunidade concreta, além da retórica de discursos ideológicos ou até demagógicos. A dívida com os negros em nossa sociedade não pode ser mascarada com o contra-argumento do racismo. Até porque o racismo está aí e é contra ele que se pretende lutar.
A cota para os negros, no entendimento dela, visa diminuir progressivamente o contingente de negros excluídos direitos cidadãos mais elementares. Quer garantir ao negro, numa perspectiva positiva, uma participação mais justa nas universidades, ainda território de brancos e ricos.
Perguntada sobre o ponto crítico de como não discriminar o branco pobre, igualmente excluído, ela não vacila em afirmar que o direito deve ser de todos. Mas que, no processo de democratização do acesso à universidade, deve-se também priorizar o acesso proporcional de negros conforme sua representação na sociedade. Colocados na vala comum, não haveria garantias para assegurar a presença de negros na universidade. Direito já conseguido pelas mulheres em alguns setores — nas universidades s já são até maioria em muitas carreiras —, cabendo também promover os índios, os deficientes físicos e demais desprivilegiados dos estratos mais humildes de nossa pirâmide social desequilibrada.
Qual a diferença da proposta dela para a de outros movimentos pelas políticas afirmativas em favor de minorias e de desprivilegiados? Negro e mulher hnão são propriamente minorias...
Ela acha que as quotas devem privilegiar os negro sim, para aumentar a presença deles nas universidades. Mas, uma vez estabelecidas as cotas, os candidatos devem alcançar os gabaritos mínimos de acesso. Está convencida de que a competitividade vai forçar no sentido de entrarem os melhores. Não se trata de um ingresso automático, mas proporcional.
Mas, se o problema é que os desprivilegiados — negros, brancos ou mestiços — vêm de escolas públicas com níveis de ensino inferiores sãos das escolas privadas que atendem às classes mais pobres, então não bastaria garantir cotas específicas para os mais pobres?
Bastaria pedir comprovante de renda? Mas não asseguraríamos, sem a ação afirmativa, o acesso dos negros às vagas, necessário para corrigir a desproporção dos afrodescendentes nas vagas universitárias.
Quando o Brasil for capaz de garantir educação de boa qualidade para todos, não haveria mais lugar para as cotas. Como não haveria mais justificativa para os programas de segurança alimentar, de seguro desemprego e de outros programas emergenciais para enfrentar as desigualdades sociais. Mas estamos longe de uma realidade desse tipo...
Em certo sentido, se os negros continuassem sendo majoritariamente pobres e sem acesso à educação, só vai contribuir para manter, não apenas a injustiça social que aflige igualmente a brancos e negros, mas também vai conservar o preconceito contra os negros. Na medida em que os negros subam na escala de educação e de renda, vão crescer em auto-estima e em reconhecimento, atenuando nosso preconceito racial.
A questão é complexa, na medida em que ainda é muito difícil separar a questão social da racial. Ivete prefere alicerçar seus argumentos da defesa dos negros na abordagem histórica, na reparação de uma dívida em consequência da abolição da escravatura que não deu aos alforriados as condições mínimas para sua reorganização social e econômica.
Mas, quem é negro no Brasil? Por que considerar os mestiços como negros, se eles podem considerar-se brancos — pelo direito que cabe ao brasileiro definir, para os efeitos de identificação, qual é a sua cor. Ivete acha justo a tradição de se auto-definir como branco, negro ou pardo(???!!!). Não é a melanina da pele que está em jogo, mas uma identidade. Considera muito positivo que uma pessoa de aparência branca opte por considerar-se negra, vencendo as barreiras do preconceito (e do auto-preconceito). No sentido inverso, não vê problema que um “pardo” prefira designar-se de “branco”, por convicção ou alienação. Ninguém pode negar o “embranquecimento” progressivo da população brasileira graças à nossa tendência ao relacionamento “inter-racial”.
A questão é outra. Pretende-se decisivamente acelerar a passagem dos negros injustiçados historicamente a proporções de representatividade mais equânimes, na pirâmide social brasileira. A cotas seriam um dos instrumentos neste sentido. Consequentemente, não pretende que a cota seja convertida em privilégio do negro. Quer dizer: negro rico, que frequentou escolas privadas e mesmo as públicas de qualidade, deve ser excluído do processo, deve concorrer às vagas sem qualquer privilégio.
A combinação da negritude (auto-definida e não pelo expediente vexatório da Universidade de Brasília, que chegou a exigir foto do candidato) com a origem nas escolas públicas é fundamental, se não pretendemos exigir o informante o “atestado de pobreza”.
Os critérios usados pela UERJ para a implantação das cotas não seguiu estes critérios e causou muita celeuma. Movimentos negros mais radicais talvez não concordem com os argumentos flexíveis de Ivete Sacramento.
No extremo oposto, brancos pretendem para impedir qualquer concessão que restrinja seus atuais privilégios, invocando critérios de “igualdade e democracia”. Esse confronto de radicais negros e brancos é que pode estimular o acirramento do racismo e não as políticas afirmativas que pretendem reduzir as enormes distâncias entre brancos e negros, entre ricos e pobres.
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